Não eram bem sete da manhã eu tinha começado o treino do dia quando o Lucas, meu personal/amigo/vizinho contou que tinha comprado um pônei que estava trancado na alfândega em Curitiba.
Desacelerei a esteira.
— Um pônei?
— Sabe os bonecos do “Meu querido pônei”1? Comprei a Princesa Luna, pra colocar junto aos outros no altar do meu quarto. É proteção, sabe? Cada um tem uma missão.
Ri alto. Não dele, nem da situação. Ri porque fiquei imaginando a cara da minha avó, católica fervorosa, se tivesse ouvido aquela frase.
Um brilho no breu
Cresci muito próxima aos meus avós paternos; eu e meu irmão ficávamos na casa deles quando nossos pais viajavam. Eles eram muito afetuosos conosco, mas também muito sérios quando o assunto era religião.
Minha lembrança mais forte é a vó Glória apagando as luzes do quarto em que dormíamos e, antes de fechar a porta, dar boa noite dizendo “não esqueçam de rezar um Pai Nosso e uma Ave Maria”. Ela falava com tanta firmeza que eu rezava, com medo que ela descobrisse o contrário.
Meu maior desafio, no entanto, era pegar no sono ignorando A LUZ que vinha de uma santa num altar próximo à janela. Sim, o quarto tinha como decoração uma Nossa Senhora que brilhava no escuro. No auge dos meus sete anos, eu preferia me deparar com monstros debaixo da cama.
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Cumpri os ritos mais comuns da Igreja Católica: batismo, comunhão, crisma. Estudei em colégio de padre, fiz faculdade em universidade católica. As orações, o sinal da cruz, Deus e milhares de passagens da Bíblia: tudo isso sempre esteve muito próximo de mim, mas não impediu, no entanto, que eu questionasse. E discordasse. E perdesse alguns hábitos, como o de rezar antes de dormir. Tenho total respeito por quem estuda, defende os simbolismos e pratica fielmente sua religião, não importa qual, mas não é pra mim.
Tem uma coisa, entretanto, que sempre me faz pensar nos meus avós: a fé. Na última ida à minha cidade natal, fui até o cemitério depois de uma caminhada. Parei em frente ao túmulo deles, dei oi, contei um pouco sobre o que eu andava fazendo, chorei. Não, eu não converso com pessoas mortas, mas mentalmente mantive um diálogo que gosto de pensar que eles ouviram. Pedi que protegessem meus pais, que não se preocupassem comigo ou com meu irmão. Pedi desculpas por não ir mais à missa, que eles não me levassem à mal. E rezei antes de sair, porque né, vai que a vó estivesse ouvindo mesmo.
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Qual a sua Ítaca?2
Ivete Sangalo fez a pergunta acima enquanto narrava sua trajetória pessoal e profissional em uma palestra na prestigiada Universidade de Harvard. Veveta falou sobre os pilares que a sustentam, sobretudo sua família. Também falou muito em Deus, mas não sob a tentativa de converter alguém, e sim, sobre como a fé - acredite você ou não em algum Deus - não deixa você se enganar.
E a fé, pra mim, é isso: é procurar algo que me traga algum tipo de conexão com quem eu amo. Aquele dia no cemitério, em silêncio e diante de um túmulo frio, me senti muito mais abraçada e acolhida do que em qualquer missa que tenha ido. Imagina a energia diante de um altar cheio de pedras preciosas e bonecos coloridos do Meu Querido Pônei?
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Amanhã, 1º de maio, meu avô Felipe faria 105 anos. Se realmente pudéssemos conversar, talvez ele tivesse puxado minha orelha por não ter casado na igreja, mas sei que gostaria de receber esta crônica como presente. O texto de hoje é dedicado à fé que ele e minha vó deixaram como legado. Dentro de mim.
Feliz aniversário, vô.
Também conhecido como “Meu Pequeno Pônei” ou “My Little Poney”, para os mais jovens.
Terra natal de Ulisses, herói do clássico Odisseia, de Homero. Na mitologia, a ilha grega diz respeito à realização pessoal, ao autoconhecimento.
Para avançar na semana
Uma música, um filme, um podcast…uma dica, enfim, para deixar o dia melhor:
Esteja você em clima de pré-feriado ou não, deixo aqui uma dica de leitura e uma música. Na companhia de um bom café, são coisas que sempre me ajudam a ter fé em dias melhores.
Leia > O que você carrega de quem te criou?
Ouça > You Gotta Be (Des’ree)
Lindo e emocionante, minha filha!!
Bj
Muito lindo Lu!! Chorei de novo! Heheh