Bolo sem nome
Isto não é uma receita (ou talvez seja).
Esses tempos sonhei com minha avó paterna. Não lembro bem o que era o sonho, deveria ter anotado, como recomendam. Só sei que tenho pensando muito nela, sem me debruçar muito sobre o porquê disso. Talvez seja o frio e a vontade que me deu, dia desses, de comer um bolo que ela fazia.
Consistia numa massa fofinha e amarelada, cuja crosta dourada era coberta por uma mistura de açúcar e canela. Nada muito complexo. Aliás, de tão simples, aquele bolo nem nome tinha. Às vezes ela chamava de bolo de canela, às vezes de bolo de nada. Na época do colégio, eu gostava de saboreá-lo no café da manhã, com um copo de leite gelado misturado com um pouco de Nescau. A vó Glória, aliás, era boa de preparar leite com Nescau. “É só fazer tic-tic-tic, assim ó”, dizia ela, enquanto me mostrava que o segredo estava no gingado do pulso.
Para me sentir menos culpada, eu a acompanhava durante o preparo do bolo, ajudando aqui e ali. Eventualmente, eu ficava responsável por untar a assadeira, mas nunca pedi dicas nem anotei o passo a passo; eu estava mais interessada no resultado final, a massa cheirosa e quentinha que sairia do forno em aproximadamente 30 minutos.
Aí está um arrependimento que carrego comigo: quando finalmente quis pedir a receita que ela guardava na memória, era tarde demais. O Alzheimer já havia roubado tudo, inclusive a lembrança do meu nome. Tem um ponto, porém, no qual eu prestei atenção e que hoje pratico enquanto meu marido prepara algo.
Eu arrumo a cozinha.
“Óbvio”, alguns diriam, geralmente o combinado é esse: quem cozinha, não lava. Mas aqui em casa não temos isso; o Tiago pilota o fogão E lava as panelas (e não, eu não me sinto culpada por isso). Contudo, durante o preparo de alguma receita demorada deliciosa, eu passo por ele questionando: isso vai fora? Posso guardar a manteiga? E o alho, já usou?
É verdade que eu não gosto de bagunça tanto quanto não gosto de cozinhar, mas esse “arruma-enquanto-faz” de alguma forma me transporta para as tardes que passei na cozinha da vó, vendo-a preparar várias delícias, como o tal bolo de nada. Quando a batedeira entrava em ação, ela costumava fazer um check dos ingredientes. “A farinha já pode guardar”, “isso aqui vai para um pote menor”, “o fermento ainda vou usar”.
Minha vó era super fã da Namaria Brega, a ponto de ter todos aqueles ímãs de geladeira que ela apertava ao mesmo tempo antes de gritar “solta os cachooorro!” (se eu fechar os olhos, consigo lembrar dela às gargalhadas com isso). Eu prefiro a Rita Lobo ou a Paola Carosella, não sei a vó ia gostar delas, não deu tempo de falarmos sobre isso.
Aliás, não sei o que ela diria se descobrisse que na minha cozinha não há rastros nem de batedeira nem de fôrmas de bolo. Ela entenderia a praticidade de comprar, mas questionaria com a acidez característica: “qual a dificuldade em fazer?”.
Eu não odeio cozinhar, apenas prefiro ver os outros preparem algo pra mim. Verdade seja dita, cozinhar exige um nível de paciência incompatível com a minha ansiedade/fome taurina. Faz um tempo eu combinei com as panelas que minha expertise se manteria no nível omelete. Ou ovos cozidos. Ou fritos. Zé fini.
*****
Comecei esse texto sem saber direito se queria falar sobre minha vó, sobre cozinhar ou sobre receitas perdidas. Talvez um pouco sobre tudo isso. Talvez sobre saudades ou, então, sobre o que nos conecta com quem sempre fará parte da nossa história, mesmo estando em planos diferentes.
Ou talvez eu só esteja criando coragem de me aventurar no vasto universo do afeto por meio da comida.
Primeiro passo: pesquisar receitas de bolo.
Para seguir a semana…
Terminei Flâneuse: Mulheres que caminham pela cidade em Paris, Nova York, Tóquio, Veneza e Londres, da Lauren Elkin. Recomendo!
Comecei Escrever é muito perigoso, da Olga Tokarczuk. A conferir!
E para não dizer que não falei em comida, deixo duas indicações: o episódio do Chef’s Table: Legends sobre o Jamie Oliver e o site Panelinha, da Rita Lobo (sim jovens, ela também está no TikTok).
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Luísa, amei esta edição! Também aprendi a cozinhar com a minha avó (materna), e carrego boas lembranças disso. (PS: estou MUITO atrasada com a leitura de algumas news, que fui deixando marcadas para ler "quando desse"... então por favor não estranhe o comentário só estar chegando agora!)
A minha avó paterna fazia pés-de-moleque incríveis! 🥹 e também sou do time “prefiro que cozinhem para mim” hahahaha