O nono da escada
As mãos calejadas e as roupas humildes indicavam uma vida simples, mas não menos rica.
Eu precisava escrever um texto como atividade de conclusão de um curso sobre - adivinhe? - escrita. As ideias eram muitas, mas nada me fazia começar. O prazo de entrega corria quando tive que viajar por uma semana inteira para um evento do trabalho.
Em uma das noites, enquanto eu aguardava o término de uma palestra, um senhor entrou questionando se ainda faltava muito para acabar. “Temos a última oficina às 20h30”, respondeu minha colega. Ele disse que aguardava o filho na rua, havia mais de hora. Por conta do frio, perguntou se poderia entrar e, em seguida, sentou-se ao meu lado na ampla escada que permitia uma visão tímida do evento. Começou a contar orgulhoso do filho único formado em Arquitetura, com pós-graduação em Design e que agora corria atrás da cidadania italiana para poder viajar. Respondi que viajar era sempre bom, fosse a trabalho ou turismo.
— Eu gosto de viajar pra aprender, sabe? - disse ele, com forte sotaque italiano, característica de muitos habitantes daquela cidade.
— Ah sim, com certeza. O senhor tem alguma viagem favorita? - continuei o assunto.
— Acho que o Pantanal. Conheço tudo lá pra cima, mas nunca vi nada mais lindo. Comprei uma camiseta com um tuiuiú bordado, a malha é padrão, sabe? Uso há 11 anos.
Seguiu contando que recentemente havia ido a Curitiba com a esposa e o filho para celebrar seu aniversário.
— Que bacana! Quantos anos o senhor fez?
— Quantos anos você acha que tenho?
Me dei conta que arrisquei uma pergunta desnecessária, mas agora precisava responder. Ele aparentava uns 80, talvez até 85 anos, pensei no meu avô. As mãos calejadas e as roupas humildes indicavam uma vida simples, mas não menos rica. Revelou ter 70 anos, dos quais 33 trabalhando na indústria metalúrgica, até se aposentar. Hoje cuida de um sítio onde planta praticamente tudo, além de criar galinhas caipiras. Pensei no meu pai, que regula de idade com ele, mas fisicamente parece bem mais jovem. A vida reservou caminhos diferentes para esses dois homens: ao meu lado, na escada, sentava um senhor muito simpático, que não havia feito faculdade alguma, mas não parecia sentir falta ou mesmo precisar de muita coisa. Meu pai concluiu o Ensino Superior, fez especializações no exterior e não pretende parar de trabalhar tão cedo, tamanha paixão pelo ofício que escolheu. Viajou comigo, meu irmão e minha mãe para outros países, outros continentes. Mas nenhum de nós conhece o Pantanal.
A palestra chegava ao fim e eu mencionei que ele poderia ir até onde o filho estava e acompanhar. “Imagina, o que os outros vão pensar?”. Percebi o quanto a vida o havia levado a pensar que ele poderia não ser bem-vindo (ou bem-visto?) em alguns lugares. O evento terminou, a sala esvaziou e eu fiquei ali, pensando no que havia aprendido. Ele já havia ido embora quando me dei conta que não sabia nem mesmo seu nome. “Que fofo o nono da escada, né? Todo orgulhoso do filho” - disse minha colega. Respondi que sim com a cabeça, e voltei pra casa para escrever.
Para avançar na semana
Uma música, um filme, um podcast…uma dica, enfim, para deixar o dia melhor:
Ouça > Vilarejo > Marisa Monte
Leia > Salvatierra > Pedro Mairal (Ed. Todavia). Arte, família, história, luto, estrada: os elementos certos para um romance genial.
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Nossa, caíram lágrimas aqui.
Adorei!!!