Tempos desses decidi entrar numa dessas brincadeiras nos stories do Instagram, onde se responde com fotos perguntas sobre a vida, estilo, nome do pet, preferências de cada um, etc. e tal. Não é sempre que participo, mas dessa vez envolvia viagem, então achei por bem engajar. Faço qualquer coisa para voar as tranças por aí.
A ideia era contar por onde você andou respondendo questões como “passou perrengue”, “sonho realizado” e, minha favorita, “memória afetiva”.
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Minha cidade natal e o Uruguai são separados por 60 km. Tal proximidade me proporcionou muito mais que o fácil acesso ao melhor doce de leite do mundo (sim, é de lá, e não da Argentina): me garantiu um lugar para querer voltar.
Existe algo no ar da terra de Pepe Mujica, um je ne sais quoi que me arrebata toda vez que chego lá. Toda. Santa. Vez. “Nem é pra tanto”, diriam alguns. E talvez não seja tudo isso mesmo, mas pra mim é. E lá se vão mais de 30 anos cruzando a fronteira.
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De Bagé, onde nasci, até destinos mais disputados, como Punta del Este ou a capital Montevidéu, passa-se por cidades como Aceguá (onde está a aduana), Melo, Treinta y Tres, Minas e San Carlos. Localidades que dão a sensação de que o tempo parou, onde motos com botijões de gás e carros enferrujados atravessam as ruas asfaltadas e iluminadas por postes com propaganda de perfume importado.
São típicas cidades de passagem, não há nada especial para fazer. Saiba, contudo, que o estabelecimento mais decadente - por onde a vigilância sanitária não passa há alguns anos - é capaz de oferecer uma excelente parrilla ou então uma deliciosa medialuna rellena con jamón y queso. Refeições honestas que repõem a energia necessária para seguir a estrada.
A verdade é que, enraizado em sua humildade, o uruguaio aparenta não ter muito a oferecer, mas sempre abrirá a porta da sua casa e oferecerá um mate - aquele como o dos gaúchos, não o dos cariocas. É importante saber respeitar esse tipo de simplicidade - pode parecer óbvio para alguns, mas não é.
Quando me deparo com alguém que está indo para as bandas de lá, sempre faço o convite para ir por esse caminho. Fico na esperança de reviver essas lembranças, mesmo sem estar junto. Infelizmente, não percorro essa estrada desde que vim morar em Porto Alegre. Claro que ainda vou para o Uruguai, mas, daqui, embarco num ônibus noturno que segue outra rota para atravessar a fronteira.
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Foi uma sexta-feira intensa. As ruas de Porto Alegre fritavam sob o sol e o clima no trabalho era de corrida pré-feriado de Carnaval. Encerrei o expediente com uma dor de cabeça que não sentia há tempos. Peguei um Uber até a rodoviária, onde encontrei o marido e comecei o processo de cura: compartilhamos um xis e uma Coca-Cola estupidamente gelada.
Entrei no ônibus numa mistura de estresse com o dia que havia sido e de ansiedade por chegar. Eu precisava me desligar, mas a adrenalina do trabalho e o açúcar do refrigerante não ajudariam. Escutei música, ouvi podcast, olhei pela janela, me revirei 2763862 vezes no banco. Até que dormi. Apaguei.
Acordei com o sol nascendo diante das casas meio quadradas meio retangulares, de teto baixo, simples, como muitas são na fronteira. A placa com “San Carlos” escrito avisava: estávamos perto do destino final. Senti os olhos molhados, as lágrimas misturavam emoção e alívio.
Flashes da minha infância percorreram a memória como na sequência de um filme. A barraca de lona do camping, os dedos murchos após horas mergulhados no mar gelado, dormir na esteira de palha ouvindo o zum-zum-zum da praia, o nariz vermelho e ardido do sol, o moletom para o frio à noite, os restaurantes com garçons de 150 anos e gravata borboleta, a cestinha com biscoitos de água e sal e o pires com pequenos retângulos de manteiga em embalagem prateada. Lembrei da sorveteria ao lado do posto de gasolina fervendo madrugada adentro, do cinema em dias de chuva, do churros fininho que todo mundo amava - menos eu. Vai entender.
Eu estava com saudades, vizinho.
Chegamos na rodoviária por volta das 7h. Na ausência de táxis por perto, o ventinho fresco da manhã nos convidou para seguirmos a pé; a mala tinha rodinhas e a distância não era longa. Em algum momento, no entanto, a rota ficou confusa, precisávamos pedir informação para seguir. Na rambla, um homem passeando com dois cachorros nos avisou que estávamos perto, só precisávamos atravessar para o outro lado da avenida principal. Gracias, amigo. Ele respondeu com a frase tão característica:
— Que lo pase bien!
À medida que caminhava, senti o vento soprar para longe as preocupações que pesavam sobre os ombros. Como em outros anos, meu Carnaval não teria bloquinhos, nem plumas ou paetês, mas seria regado a pores do sol e licuados de durazno con naranja.
Entro no apartamento que será nossa casa por poucos dias e deixo a mochila num canto. Abraço meus pais, que nos aguardavam. Olho pela janela. Ouço o mar.
Sin apuro, respiro, reflito, relaxo.
Obrigada, vizinho. Gracias por todo, Uruguay.
Para avançar na semana
Uma música, um filme, um podcast…uma dica, enfim, para deixar o dia melhor:
Como falar sobre o Uruguai sem mencionar a obra-prima que é Jorge Drexler?
Ouça > Todo se transforma
Não nasceu na fronteira mas é apaixonado como eu ou quer entender melhor esse amor pelo país vizinho?
Siga > Viver Uruguai e Instatannat
E para encerrar com chave de ouro, uma dica bem taurina: o melhor doce de leite do mundo (não é publi!).
Se chegou até aqui, um obrigada e uma pergunta: para onde você gostaria e voltar sempre?
Até a próxima crônica, que lo pase bien!
Pude viajar com você!
Adorei te acompanhar neste trajeto, que texto lindo!
De minha parte, fico em dúvida entre Ushuaia e Londres, dois lugares que me provocaram sensações fortes demais 🩷