Sessenta e três
Em algum momento, entendemos que nossos pais fizeram o melhor que podiam.
Nunca fui parecida com minha mãe. Não fisicamente, ao menos. Já no jeito de ser, eu resumiria da seguinte forma: sangue não é água.
Minha mãe deixou de falar “mãe” muito cedo. Aos cinco anos, perdeu minha avó para o câncer de mama. Não há nada mais difícil e complexo do que o luto, cada pessoa tem seu jeito de vivê-lo. Como explicar isso a uma criança? Como esperar que ela entenda?
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Quando meus pais tinham algum evento ou viagem, minha mãe tinha o (péssimo) hábito de se despedir me dizendo “não importa o que acontecer, estaremos sempre juntas”. Poderia ser apenas um jantar na casa de amigos, eu os veria assim que acordasse no dia seguinte, mas, na minha mente à la Fantástico Mundo de Bobby, ela estava indo embora para sempre. Eu chorava como se não houvesse amanhã.
Anos depois, ela explicou que dizia isso porque (pensava que) ajudava a combater a saudade. Hoje dou risada, mas com respeito: como um adulto que teve uma infância tão breve saberia interagir com uma criança? Eu e minha mãe não nos entendíamos, foi assim por muito tempo. Meus convites para brincar não correspondiam à maturidade que ela precisou ter desde cedo. Não tínhamos culpa: nem ela, nem eu.
Lembro quando eu voltava do colégio indignada, contando algum caso seríssimo da aula de Educação Física (o reino das tretas), ela respondia num corte afiadíssimo: “Isso não é problema, tem criança passando fome na rua”.
Não havia jeito. Diante das mazelas do mundo, meus pepinos da 4ª série teriam que esperar.
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Apesar de todo e qualquer contratempo – e sobretudo porque, em algum momento, entendemos que nossos pais fizeram o melhor que podiam –, minha mãe sempre foi carinhosa. Na Semana Santa, ela gostava de comprar um daqueles ovos bem grandes, dos maiores no supermercado, e abrir antes do domingo de Páscoa. Era uma espécie de pré-celebração, eu achava o máximo. No meu aniversário, a turma inteira podia brincar no pátio lá de casa. Às vezes, na saída do colégio, uma doce surpresa: dividíamos uma banana split na sorveteria. Eu, que sempre fui taurina boa de garfo, não me importava muito com a sobremesa, ficava feliz porque era um momento só meu e dela. A cumplicidade entre mãe e filha existia, afinal.
Ao me aproximar dos 40, entendo as noites de insônia que minha mãe teve, especialmente quando completou 39 anos, idade com que minha avó faleceu. Entendo que, quando eu e meu irmão fizemos cinco anos, ela se perguntou se celebraria outros aniversários com a gente. Entendo o tanto de vezes que ela ouviu “tua filha não tem nada de ti” (porque sempre me acharam fisicamente parecida com meu pai) e ficou em silêncio, sabendo que era dela minha paixão por viagens e por aprender outros idiomas.
Ontem minha mãe completou 63 voltas ao Sol. Aliás, nós duas celebramos aniversários no dia 2: eu, maio; ela, outubro. Hoje me defendo melhor dos cortes afiados (sim, eles ainda vêm): chamo ela de Hermínia. A verdade é que não posso falar, meus amigos mais próximos sabem que estou sendo carinhosa mesmo quando sou faca na bota.
Realmente, sangue não é água.
Para avançar na semana
Uma música, um filme, um podcast…uma dica, enfim, para deixar o dia melhor:
PARA LER: Aos prantos no mercado > Michelle Zauner (Ed. Fósforo). Um relato honesto sobre saudades, misturado à delícias da gastronomia sul-coreana e, claro, relação entre mãe e filha.
PARA ASSISTIR (e cantar e dançar) > Mamma mia! - O filme. Já tem até a continuação, mas eu recomendo o primeiro. Não gosta de ABBA? Tudo bem, tem a Meryl Streep e cenários paradisíacos. Precisa de mais motivos?
Que texto gostoso sobre a relação mãe e filha, Luísa. Me emocionei com alguns trechos e senti teu carinho por ela em cada linha! Um beijo grande pra tua mãe também!
Parabéns pra tia Cristina!!! E pro texto que me jogou de volta pros anos 90/2000 dos dias na tua casa… E sim, continuamos te amando mesmo sendo faca na bota (“te amo, mas vai te catar” hahaha)