Em maio de 2023, estive em Cruz Alta (RS) a trabalho. O município de cerca de 60 mil habitantes é mais conhecido por ser a terra de Érico Veríssimo. Em uma manhã livre, segui a sugestão de uma colega e visitei o Museu Érico Veríssimo. O sobrado onde nasceu o escritor é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (IPHAE).
Chegando lá, Emília logo se apresentou como guia turística e também zeladora da casa, que não era muito grande, mas parecia imensa só para nós duas. Até que ela começou o tour e senti que faltava espaço para tanta história. O autor de O Tempo e o Vento nasceu numa família de muitas posses, mas o pai perdeu tudo para o jogo e o álcool. O destino do jovem Érico, que previa a conclusão dos estudos em Edimburgo, na Escócia, mudou por completo. “Em tese, ele tem somente até a 8ª série do Ensino Fundamental, imagina só!”, confidenciou a guia.
Eu mal havia processado o sucesso de Olhai os Lírios do Campo quando Emília contava sobre a temporada que o escritor passou nos Estados Unidos, onde lecionou na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Entre perguntas e respostas, a guia mostrou-se uma detentora sem igual do legado de Érico.
À medida que avançávamos pelos cômodos, me dei conta que Emília parece não ter recebido um terço do reconhecimento que merece. Se a memória de Érico permanece viva em sua cidade natal, ela é uma das principais - se não a principal - responsável. Não perguntei sua idade, mas me disse estar próxima da aposentadoria e temer pelo futuro do museu. Ainda assim, concluiu a visita com um sorriso orgulhoso, como se contasse a trajetória do próprio filho. Sua mensagem final, contudo, era dedicada a outra pessoa. “Veja, aqui temos a máquina de costura que nos ‘deu’ o Érico. Foi assim que a mãe dele, dona Abegahy, pôde trabalhar e continuar pagando seus estudos. Ela foi, sem dúvidas, uma mulher à frente do seu tempo.”
Grata e emocionada, me despedi de Emília. Fui embora pensando no quanto da mãe de Érico estaria presente em Ana Terra, para então refletir sobre o quanto de Ana Terra teria Emília, e sobre como muitos homens se veem no espelho como um certo Capitão Rodrigo, mas esquecem que o traço principal do personagem não era a coragem e sim o ego.
Um país, dois Nobel
O ano passou e em setembro viajei de férias para o Chile.
Antes de embarcar, eu e Tiago já havíamos reservado o passeio de um dia para Valparaíso e Vinã del Mar, cidades vizinhas a Santiago. O tour começava cedo pela manhã, com uma van que nos buscou no hotel na capital chilena. Já na estrada, o guia Diego começou a falar sobre o que nos esperava em Valparaíso, e logo mencionou a casa de Pablo Neruda, “nosso segundo Prêmio Nobel de Literatura”, contou. Quem foi o primeiro?, pensei. Antes que pudesse questionar, o falante guia já contava sobre outro trecho do roteiro.
Chegamos a Valparaíso e, em poucos minutos, estávamos em uma pequena praça onde havia uma escultura de Pablo Neruda. Uma fila de turistas rapidamente se formou para tirar fotos com o autor de Cem Sonetos de Amor. Enquanto isso, Diego seguiu em direção a um banco, onde havia outra escultura: a de uma mulher sentada. “Esta é nossa primeira Nobel de Literatura, Gabriela Mistral.”
Oi?
A todos que conhecem Gabriela Mistral, peço perdão. Confesso, humildemente, que até então o nome não me era familiar. O choque maior, no entanto, foi o fato de que havíamos rodado um bom pedaço de estrada entre Santiago e Valparaíso com um falante Diego sobre todas as maravilhas do Chile, incluindo, é claro, o talento, as obras, a casa e a vida de Neruda.
Sobre Gabriela Mistral, nada.
Eu poderia discorrer aqui sobre sua trajetória, mas convido vocês, queridos leitores, a darem um Google sobre a primeira Nobel de Literatura da América Latina, enquanto compartilho alguns destaques:
Ela morava em Petrópolis, no Rio de Janeiro, quando recebeu a notícia do prêmio, em 1945. SIM, NO BRASIL.
Entre os 120 agraciados com o Nobel de Literatura até hoje, apenas 17 são mulheres. Gabriela é uma delas.
Gabriela Mistral, aliás, é um pseudônimo para Lucila de María del Perpetuo Socorro Godoy Alcayaga, assim como Pablo Neruda nasceu Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto (e, apesar ser mais lembrado, recebeu o Nobel de Literatura quase 30 anos depois de sua conterrânea).
Nem tudo são rosas (nem para a Barbie)
Pensei em Emília e Gabriela enquanto acompanhava (e compartilhava) a revolta sobre a não indicação de Greta Gerwig e à Margot Robbie ao Oscar de direção e melhor atriz, respectivamente, por Barbie. Da literatura à sétima arte, a história se repete. Nada novo sob o sol, como bem lembrou uma amiga dia desses.
O que Emília precisaria fazer para receber o reconhecimento que merece? De que forma Gabriela poderia ser parte do discurso que só cita Neruda? Por que Greta e Margot não foram indicadas pela Academia? Na teoria, a resposta é simples. Na prática, é bem mais complexo, porque tem a ver com algo muito mais potente que uma bomba atômica (super indicada ao Oscar, por sinal). Tem a ver com não desistir.
Para avançar na semana
Uma música, um filme, um podcast…uma dica, enfim, para deixar o dia melhor:
Registro aqui meu respeito e admiração pelo legado de Veríssimo e Neruda, e assumo que preciso me aprofundar no de Gabriela Mistral. Minhas dicas de leitura, no entanto, são duas jovens autoras, cujas pesquisas refletem muito do que falei acima - e do que nós, mulheres, vivemos no dia a dia.
Leia > Falso Espelho (Jia Toletino, Ed. Todavia) e Aurora - O despertar da mulher exausta (Marcela Ceribelli, Ed. Harper Collins).
Assista > Barbie, é claro!
MUITO OBRIGADA a todos que assinam, leem, comentam, curtem ou compartilham esta newsletter. O apoio de cada um, cada uma, é fundamental para seguir em frente.
Inclusive em Santiago tem um Centro Cultural da Gabriela Mistral que recomendo muito (claro que só fiquei sabendo dela lá).
Muito legal! Obrigada pelos minutos de tranquilidade e reflexão. Espero ansiosa pelo próximo, como sempre!