Era só mais um sábado de verão em Forno Alegre. Eu, o marido e os cachorros estávamos saindo de casa para almoçar quando o Tiago avisou que olharia a caixa de correio. Segui para o carro com a dupla canina e o aguardei, sem esperanças de que houvesse outra coisa que não fossem contas a pagar dentro do quadradinho identificado com o número do nosso apartamento.
Eu estava errada.
O Tiago entrou no carro e disse: “tem uma coisa aqui pra ti”. Era um envelope que havia atravessado um bom naco de oceano: tinha vindo da Holanda.
Não há no mundo inteiro coisa melhor do que carta. (Clarice Lispector)
Minha amiga Carol mora há alguns bons anos na terra de Van Gogh, e é lógico que falamos pelo WhatsApp, Google Meet e tudo mais que a tecnologia pode oferecer. Mas a Carol envia, de tempos em tempos, um postal ou uma cartinha escritos à mão, com um único objetivo: alegrar quem os recebe. Tenho um de Londres, outro da Irlanda e mais três da Holanda.
Minhas queridas
Do tempo em que morou em diferentes localidades da Europa em plena Segunda Guerra Mundial, Clarice Lispector escrevia quase diariamente às irmãs Elisa e Tânia. Em Minhas Queridas (Ed. Rocco, 2007), a autora de A hora da estrela e A paixão segundo G.H. conversa com as irmãs sobre, bem, tudo. Da inutilidade da guerra à relação com personalidades como Bluma Weiner1 e Mafalda Verissimo2, Clarice passa por inúmeras cidades do velho continente, em países como Itália e Bélgica, e depois parte para os Estados Unidos.
Em diferentes cartas, ela relata o processo de envio e recebimento de correspondências. Cobra das irmãs que a escrevam mais seguidamente, sinaliza para onde e como enviar, e de que forma ela poderá receber caso esteja em outra cidade. Para millenials como eu, que até lembram de um mundo menos digital, é curioso ver o esforço necessário para se comunicar.
Lembrei de quando minha prima fez um intercâmbio em Vancouver, no Canadá. Era o tempo da internet discada. Todos os dias de manhã cedo, antes de sair para o colégio, eu ligava o computador e aguardava ansiosa pela conexão (lembra o barulhinho?). Os e-mails trocados entre minha prima e eu não tinham 24h de diferença, mas minha emoção ao ver a caixa de entrada com novidades era idêntica à de Clarice quando narra às irmãs a felicidade em receber notícias delas, mesmo após a espera de dias.
Escrevam. Recebam meu abraço feliz, não esquecerei nunca a alegria que vocês me deram ontem. E sempre.3
Para além das memórias, intimidades e afetos compartilhados entre irmãs, é impossível ler Minhas Queridas sem refletir quais seriam as impressões de Clarice sobre a realidade (extremamente e estranhamente) conectada em que vivemos. Talvez nem gostasse tanto. Talvez não escrevesse e-mails diários às irmãs e detestasse por completo as redes sociais; talvez mantivesse uma máquina de escrever por simples apego. Ou então, talvez acharia tudo o máximo.
Desconfio que, ainda que fosse amante da tecnologia, Clarice faria como minha amiga Carol: escreveria um postal ou carta a alguém que considera muito, mas em momentos especiais, como aniversários ou fim do ano. Nada de urgências. Reconheço que é bem fantástico poder fazer uma chamada de vídeo para a minha amiga que mora em Nova York no dia do aniversário dela, assim como volta e meia troco mensagens por WhatsApp com meu amigo que vive no Québec, só pra saber como ele está, no intervalo de um instante. Voltar ao tempos dos malotes transportados por navio ou avião pra conseguir ter notícias de quem está longe? Melhor não.
Há, entretanto, uma magia em torno da carta redigida especialmente por um amigo ou parente, por mais curta que seja a mensagem, pois ali também está implícito o carinho que o remetente tem pelo destinatário. Escrever à mão é menos rápido que digitar; ir aos correios leva um pouco mais de tempo do que clicar em “enviar”.
Talvez tudo isso seja apenas parte do meu encantamento por coisas de antigamente, mas vejo cartas e cartões-postais como símbolos modestos e, ao mesmo tempo, potentes das conexões que criamos.
Existe algo melhor do que isso?
Para avançar na semana
Uma música, um filme, um podcast…uma dica, enfim, para deixar o dia melhor:
O texto acima fala em específico de cartas e postais escritos à mão, mas a verdade é que eu amo QUALQUER TIPO de mensagem. Então, seja um zap, um e-mail ou um comentário abaixo, escreva-me! Vou adorar ler e responder :)
E para não sair sem dicas, como sempre faço, deixo aqui um filme que não está entre os favoritos do Oscar (inclusive, acho que não merecia mesmo), mas tem cartas como pano de fundo.
MUITO OBRIGADA a todos que assinam, leem, comentam, curtem ou compartilham esta newsletter. O apoio de cada um, cada uma, é fundamental para seguir em frente.
Esposa de Samuel Wainer, fundador do jornal Última Hora. Residia em Paris à época em que Clarice estava na Bélgica. Foram grandes amigas.
Esposa do escritor gaúcho Erico Verissimo. Conviveu com Clarice por três anos em Washington.
Trecho de carta escrita às irmãs em 12 de dezembro de 1946, quando Clarice residia em Berna, na Bélgica. Ela havia recebido notícias das irmãs no dia 11, um dia após seu aniversário, comemorado em 10 de dezembro.
Esse livro é um encanto! Se não me engano agora já existe um compilado com todas as cartas de Clarice, mas quando ainda estava a conhecer a obra da autora me deleitei horrores com os livros de cartas. Adoro as praticidades do mundo moderno, ainda mais morando tão longe. Mas é um charme ver postais e cartas perdidos no meio dos envelopes sem graça com cobranças que recebemos rotineiramente. É um mimo desses que a gente recebe como se fosse um abraço, não é mesmo? Amei o texto <3
Me senti abraçada com teu texto! ♥️ Adoro enviar postais e cartas. É a minha forma mandar um carinho de forma mais física a quem queremos bem. E tu sempre és a primeira pessoa que lembro quando faço minha listinha de endereços.
Continuarei enviando mais notícias do outro lado do Atlântico, e tu, escrevendo por aqui.
Orgulho de ti, minha amiga talentosa. Um abraço apertado e siga conferindo os teus correios. 📮